Voracidade do tempo que passa mas que não deixa resquícios dos segundos passados, das rugas na testa, da oxidação do portão da frente de casa. O tempo passa sem a interrogação do que pode ser. De uma indagação desnecessária. De um sentimento jamais expressado. De um orgasmo reprimido. Da gente feia que se penteia, maquia e tenta esconder os dentes mal formados, o formato inexpressivo do rosto, o nariz quase inexistente. De um olhar que não atrai atenção e que se esconde num esboço de sorriso demasiadamente singelo.
O sujeito jamais fora bonito de nada. Um rabisco no papel. Amassado. Jogado fora. Sem natureza que evoluciona. Sem a coragem dos épicos mentirosos. Nada, absolutamente nada lhe fazia sorrir de alma. Sorria por conveniência diante daquilo alheio. E andava, andava. Sem permissão de gente humana, ele seguia chorando a vida que caíra por casualidade e infortúnio naquele corpo cariado, esquelético. Sem cores que lhe desse ar de alegria. Não era branco, nem preto. Opaco por DNA. Feio por destino e às vezes feliz sem motivo.
O sujeito anda sem paradeiro aos passos curtos e rápidos dessa multidão asombrada que se apressa para não perder o coletivo das duas horas da tarde. Pára no semáforo que anseia um verde sangue, de libertade e desoclusão. O verde é para os carros que aceleram os motores ruidosos desta metrópole de muitos donos. A multidão pára assustada, apressada, no vermelho do semáforo. Alguns cortam a avenida expressa por entre os carros acelerados, sobre o asfalto quente das quase duas horas da tarde de uma segunda-feira atrasada.
4 comments:
Sabe do que eu me lembrei? Isso mesmo: Contos da meia-noite. Ao mesmo tempo em que lia, eu já dramatiza. Quem o interpretaria? Acredito que Maria Luiza Mendonça. É essa mesmo? Aquela que interpretou o Ex-mágio da taberna minhota? Ficaria show! rs
Forte. Comovente. Instigante.
Eu gostei bastante deste conto. Lembrou-me a descrição da morte de Macabéa na Hora da Estrela, quando ela morre com a cabeça na moita de capim. Achei "cabuloso", hehehe. Muito cabuloso. Mas neste seu conto não tive tempo de entender o personagem direito, então a morte dele foi meio policial - como aquelas notícias que lemos em um jornal velho desses que a gente encontra quando vamos a uma revistaria antiga. Então queria te pedir que falasse mais do personagem que vai morrer antes de matá-lo, na próxima vez, hehehe.
Um abraço.
Olha, você tem um leitor assíduo!
Gostei.
Quando comecei a ler imaginei que o personagem queria morrer - o que não deixa de ser uma libertação da limitação física dele. O "verde sangue" soa como premeditação dele (afinal, o verde é o sinal para os carros seguirem e não para ele; e o sangue é a única coisa dele que não o inferioriza diante dos outros). Também fato de seu corpo atropelado olhar para o céu me dá essa sensação da liberdade (mórbido demais pra mim).
Prefiro as analogias:
- A "mãe que carrega o filho recém nascido", como se simbolizasse o futuro sendo arrastado para o caos do presente, sempre um passo a frente da realidade e querendo fugir da única certeza que temos.
- A "professora" me dá a idéia de que o conhecimento transforma... liberta... te leva a um outro estágio. Mas você deixou claro que era uma "senhora" e isso pode ser visto como algo ultrapassado, míope, lento e sem atitude para mudar o rumo. E por isso ignora a nossa realidade, as nossas diferenças, porque não pode se atrasar (tem que cumprir o cronograma!).
É isso, vou ler novamente, ok?
Abração, Anderson.
Uau! Este conto é realmente muito bom ainda mais pra quem participa do cotidiano de uma grande metrópole como São Paulo. Concordo inteiramente com o Alciel, lembra bastante a morte de Macabéa...seria ele também um Macabeu, como tantos que perambulam sem rumo e sem esperança por estas ruas repletas de mortos que andam e não sabem pra onde? Esperamos novos contos para descobrimos mais sobre suas idéias, sobre a genialidade deste autor que faz com que nos sintamos VIVOS. PARABÉNS!
PS: Espero que um dia ele me venda os direitos pra transformarmos em um filme, no mínimo!
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