Sunday, August 5, 2007

Sujeito

Sujeito
por leandro justen

Voracidade do tempo que passa mas que não deixa resquícios dos segundos passados, das rugas na testa, da oxidação do portão da frente de casa. O tempo passa sem a interrogação do que pode ser. De uma indagação desnecessária. De um sentimento jamais expressado. De um orgasmo reprimido. Da gente feia que se penteia, maquia e tenta esconder os dentes mal formados, o formato inexpressivo do rosto, o nariz quase inexistente. De um olhar que não atrai atenção e que se esconde num esboço de sorriso demasiadamente singelo.

O sujeito jamais fora bonito de nada. Um rabisco no papel. Amassado. Jogado fora. Sem natureza que evoluciona. Sem a coragem dos épicos mentirosos. Nada, absolutamente nada lhe fazia sorrir de alma. Sorria por conveniência diante daquilo alheio. E andava, andava. Sem permissão de gente humana, ele seguia chorando a vida que caíra por casualidade e infortúnio naquele corpo cariado, esquelético. Sem cores que lhe desse ar de alegria. Não era branco, nem preto. Opaco por DNA. Feio por destino e às vezes feliz sem motivo.

O sujeito anda sem paradeiro aos passos curtos e rápidos dessa multidão asombrada que se apressa para não perder o coletivo das duas horas da tarde. Pára no semáforo que anseia um verde sangue, de libertade e desoclusão. O verde é para os carros que aceleram os motores ruidosos desta metrópole de muitos donos. A multidão pára assustada, apressada, no vermelho do semáforo. Alguns cortam a avenida expressa por entre os carros acelerados, sobre o asfalto quente das quase duas horas da tarde de uma segunda-feira atrasada.


O sujeito, logo ali, a um passo de uma mãe que segura o seu recém-nascido nos braços, não pára, seguindo adiante, passos curtos. Os carros tentam desviar daquele corpo franzino, feio, que se projeta continuamente para o centro daquela avenida expressa, onde às 10 horas da noite as prostitutas cuidam dos trabalhadores da construção civil.

Mas um passo, mais outro. O sujeito, sem muita objeção, atropela um carro que vinha à velocidade dos dias contemporâneos. Aquele corpo sem dono, sem desejo, sucumbe ao impacto do carro vermelho, que vinha sendo conduzido por um senhora professora que jamais houvera sentido o cheiro de morte tão presente, tão vivo. O automóvel vermelho ainda tivera audácia de passar por cima daquele monte de pele sem uso, manchando a avenida que leva nome de presidente e que fora palcos de muitos contos, muitos destes inacabados.

A multidão aproxima-se do corpo ensanguentado, imóvel, olhos parcialmente abertos olhando pro céu que se escondia acima dos prédios antigos do centro da cidade. Anônimos respiram o sangue ralo que exalava e fritava no asfalto quente. O sinal abre aos pedestres que se desagregam e instantes depois se esquecerão da imagem crua da carne humana.

4 comments:

Unknown said...

Sabe do que eu me lembrei? Isso mesmo: Contos da meia-noite. Ao mesmo tempo em que lia, eu já dramatiza. Quem o interpretaria? Acredito que Maria Luiza Mendonça. É essa mesmo? Aquela que interpretou o Ex-mágio da taberna minhota? Ficaria show! rs
Forte. Comovente. Instigante.

Alciel said...

Eu gostei bastante deste conto. Lembrou-me a descrição da morte de Macabéa na Hora da Estrela, quando ela morre com a cabeça na moita de capim. Achei "cabuloso", hehehe. Muito cabuloso. Mas neste seu conto não tive tempo de entender o personagem direito, então a morte dele foi meio policial - como aquelas notícias que lemos em um jornal velho desses que a gente encontra quando vamos a uma revistaria antiga. Então queria te pedir que falasse mais do personagem que vai morrer antes de matá-lo, na próxima vez, hehehe.
Um abraço.
Olha, você tem um leitor assíduo!

Unknown said...

Gostei.

Quando comecei a ler imaginei que o personagem queria morrer - o que não deixa de ser uma libertação da limitação física dele. O "verde sangue" soa como premeditação dele (afinal, o verde é o sinal para os carros seguirem e não para ele; e o sangue é a única coisa dele que não o inferioriza diante dos outros). Também fato de seu corpo atropelado olhar para o céu me dá essa sensação da liberdade (mórbido demais pra mim).

Prefiro as analogias:

- A "mãe que carrega o filho recém nascido", como se simbolizasse o futuro sendo arrastado para o caos do presente, sempre um passo a frente da realidade e querendo fugir da única certeza que temos.

- A "professora" me dá a idéia de que o conhecimento transforma... liberta... te leva a um outro estágio. Mas você deixou claro que era uma "senhora" e isso pode ser visto como algo ultrapassado, míope, lento e sem atitude para mudar o rumo. E por isso ignora a nossa realidade, as nossas diferenças, porque não pode se atrasar (tem que cumprir o cronograma!).

É isso, vou ler novamente, ok?
Abração, Anderson.

Unknown said...

Uau! Este conto é realmente muito bom ainda mais pra quem participa do cotidiano de uma grande metrópole como São Paulo. Concordo inteiramente com o Alciel, lembra bastante a morte de Macabéa...seria ele também um Macabeu, como tantos que perambulam sem rumo e sem esperança por estas ruas repletas de mortos que andam e não sabem pra onde? Esperamos novos contos para descobrimos mais sobre suas idéias, sobre a genialidade deste autor que faz com que nos sintamos VIVOS. PARABÉNS!
PS: Espero que um dia ele me venda os direitos pra transformarmos em um filme, no mínimo!