Um conto que revela não somente as minúcias incompreensíveis do amor incondicional de mãe, mas as dimensões do sentimento humano, complexos e contraditórios.
Júlia Lopes de Almeida revela porque consagra-se como uma das maiores escritoras brasileiras.
Em "A Caolha", escrito em uma época quando escrever era uma arte masculina, Júlia se estabelece pioneira, a abrir caminho para um prolífero legado literário brasileiro.
Disfrutem!
A CAOLHA
por Júlia Lopes de Almeida
foto por leandro justen
A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.
O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.
Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda gente.
Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa fábrica de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora...
Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.
Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um beijo todas as amarguras da existência?
Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o triste coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos braços e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!
Ela compreendia tudo e calava-se.
O filho não sofria menos.
Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo - o filho da caolha.
Aquilo exasperava-o; respondia sempre:
- Eu tenho nome!
Os outros riam e chacoteavam-no; ele se queixava aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los - mas a alcunha pegou. Já não era só na escola que o chamavam assim.
Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!
Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!
As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lanche, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:
- Taí, isso é para o filho da caolha!
O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:
- Filho da caolha, filho da caolha!
O Antonico pediu à mãe que não o fosse buscar à escola; e muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas.
A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo - o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.
Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda: os seus colegas agruparam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!
Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!
Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava!
Amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!
Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu querido filho! Pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo:
- Sou muito feliz... o meu filho é um anjo!
Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjecturas.
Ao princípio pensava: - É o pudor.
Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente da mãe!
Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de - nora da caolha, ou coisa semelhante!
O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!
Depois o seu rancor se voltou para a mãe.
Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela!
Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; iria considerar-se humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente...
Salvava assim a responsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor...
Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.
A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou:
"Ao dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?" Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:
- Limpe a cara, mãe...
Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:
- Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
- Foi uma doença, - respondeu sufocadamente a mãe - é melhor não lembrar isso!
- E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
- Porque não vale a pena; nada se remedeia...
- Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja... já aluguei um quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa... É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!...
Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olhar desconfiado e medroso.
A caolha se levantou e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:
- Embusteiro! O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!
O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.
Ela o acompanhou, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cabaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.
O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.
Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho - murcho e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.
Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava.
Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera.
A madrinha escutou-o comovida; depois disse:
- Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!
- Que verdade, madrinha?
- Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho - queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz se arrependera das palavras que dissera e tinha passado a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas... Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.
A madrinha do Antonico começou logo:
- O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!
- Cala-te! - murmurou com voz apagada a caolha.
- Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a tua mãe foste tu!
O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:
- Ah, não tiveste culpa! Eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu o enterraste pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!
O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:
- Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!